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O Calvário de Proust

 

O Calvário de Proust

 

A Moral do Artista: Leitura de Proust (Uma Abordagem Inspirada em Samuel Beckett) – Ensaio por Jacob (J.) Lumier

Fragmento do libro “A Moral do Artista: Leitura de Proust“, por Jacob (J.) Lumier

(Uma Abordagem Inspirada em Samuel Beckett)  – Ensaio

Internet, versão E-book pdf, Setembro 2010, texto: 131 págs.

Com notas, referências bibliograficas e índice analítico eletrônico (sumário).

Editor Bubok Publishing http://www.bubok.es/libros/190395/A-Moral-do-Artista-Leitura-de-Proust

Publicação do Websitio Produção Leituras do Século XX – PLSV: Literatura Digital http://www.leiturasjlumierautor.pro.br

 

 

 

 

 

PARTE QUARTA:

 Sentimento e Individuação  –  Sob A Visão de Albertine  

A filosofia estética do sentimento como Expressão da individuação.

 

 

 

A análise desenvolvida sobre a cena do primeiro contato em Balbec nos mostra um narrador às voltas com a multiplicidade pictórica de Albertine convertendo-se em uma multiplicidade plástica.

A Multiplicidade Plástica

Nesse desenvolvimento do pictórico ao plástico a visão de Albertine antes e depois do primeiro contato se altera muito mais do que um simples efeito do ângulo de enfoque do observador, desembocando em um tumulto de contradições objetivas e imanentes, sobre as quais o sujeito carece de controle.

O narrador vê Albertine pela primeira vez incorporada ao brilho do pequeno bando de moças em bicicletas contrastadas pelo mar. Grupo pictórico este que, em sua adoração invejosa, o narrador simbolizará nas Bacantes.

Albertine lhe parece carecer de individualidade e, nessa imaginação pictórica, está como envolta em um casulo: “uma crisálida delicada e quase abstrata”, em tal modo que “só o mistério do bando orgiástico de Bacantes” envolvendo-a num “cerco de rosas que rompe as linhas das ondas” será a única imagem válida, e permanecerá nas referências posteriores do narrador.

Em outro dia, ela o fita na praia e Beckett nos reproduz a frase desse relato retrospectivo, escrita pelo narrador então já fascinado pelo desejo de possuí-la e pressentindo a impossibilidade desse sentimento: “soube que não possuiria a jovem ciclista se não conseguisse possuir o que havia em seus olhos” – ele ainda não consegue vê-la dissociada do mistério das bacantes em bicicleta.

O contato com ela lhe é proporcionado pelo pintor Elstir que lha apresenta, e ele “começa a conhecê-la através de uma série de subterfúgios” em que cada fragmento de sua fantasia e seu desejo é substituído por um conceito bastante menos preciso.

Criar-se-á então a Albertine da multiplicidade plástica, cujas expressões são equiparáveis a um caleidoscópio.

Empenha-se em observá-la em todas as oportunidades. Observa-a nas relações dela com Mme. Bontemps; nas primeiras ambigüidades entre ele e ela; no reflexo de um luar em seu queixo; na maneira em que emprega o advérbio ‘perfeitamente’ no lugar de ‘inteiramente’; na inflamação no canto de seu olho interferindo nas suas feições e, dessas observações, encontra a aparência dela como a passar da superfície mansa e polida a “um estado quase fluido de alegria translúcida, uma congestão febril”.

Quando ousou seu primeiro gesto impreciso de aproximação, é repelido com frieza, levando-o a concluir que, em modo contrário à sua fantasiosa hipótese pictórica inicial, de ser ela a possível amante de um corredor ciclista ou de um campeão de Box, Albertine era honesta e fora falsa sua apreciação sobre o caráter dela.

Todavia essa nova impressão é plástica e cambiará. O esquema da tragédia de Albertine se complica e altera o estado do narrador nas suas relações em Paris. Há certa perplexidade em face da própria incapacidade dele para encontrar um denominador comum, interligando a nova Albertine ou a nova multiplicidade dessa nova Albertine agora tomada em seus braços.

A configuração poética já não tem apenas uma base visual, fosse pictórica ou plástica.

O objeto do desejo que ela parece simbolizar – a mulher e o mar –, acentuando no plano espiritual o prazer desfrutado dos favores dela, sofisticada, para ele já iniciada, esse objeto ou esse composto, através do hábito dela, leva a formar um segundo composto, desta vez com os ciúmes.

De fato, Beckett acentua que as simbolizações de Balbec e seu mar vêm a ser restituídas através do hábito de Albertine, como amálgama do humano e do marinho em um estímulo do coração, exatamente através dos ciúmes.

A visão de Albertine espantando o narrador e escapando a toda a composição de unidade mostra não só a Albertine de sua imaginação, a apaixonada e irreal da praia; a Albertine real e aparentemente virginal, revelada a ele no final de sua estadia em Balbec; mas também lhe mostra esta terceira Albertine que, no dizer de Beckett, “cumpre a promessa da primeira na realidade da segunda”.

Mas essa nova Albertine é múltipla e o narrador vê claramente a dificuldade em viver com ela, melhor: vê a ameaça aos seus sentimentos, tanto que, depois de sua primeira visita à Princesa de Guermantes, quando sentado em seu quarto esperando-a que não chega, sente como essa “não-chegada” exalta uma simples irritação física convertendo-se em chama de angústia espiritual.

Beckett faz sobressair nesta narrativa de Proust o modo como, muito mais que o ouvido ou a mente, o narrador é todo o coração ao atentar para os passos dela ou para a chamada sublime do telefone.

Destaca-se ainda a necessidade, a carência com que o narrador relacionou o consolo outrora obtido pelo carinho de sua mãe à esperada chegada de Albertine, causando-lhe ademais uma inquietação suplementar a consciência de haver visto nesta Albertine comum “uma fonte de consolo e salvação que milagre algum poderia substituir”.

Tal a impressão da impossibilidade em possuir o outro que então o narrador formula na seguinte frase: “só se ama aquilo que não se possui, só se ama aquilo no qual se busca o inacessível”.

Será a este e a outros semelhantes pensamentos do narrador que, como veremos, Beckett se refere ao afirmar que, em Proust, o amor é uma função da tristeza, comportando o sentimento de que nessa matéria não há escolha ruim, mas o fato mesmo de ter havido uma escolha implica que tenha sido ruim.

A solidificação do perfil de Albertine só acontecerá na segunda visita a Balbec, o que não significa o encerramento da dúvida do narrador sobre esse capítulo da relação entre ele e ela.

Pelo contrário, “a transformação de uma criatura de superfície em uma criatura com profundidade” tem início no momento em que o Dr. Cottard vê Albertine dançando com Andrée, uma das suas amigas do bando em bicicleta, e insinua tratar-se de intimidade sexual, dando lugar ao tormento recíproco na relação entre o narrador e ela.

Em meio a mentiras e contra-mentiras, perseguição e evasão, ele vivencia um amor por Albertine “cuja intensidade está em relação direta com o êxito dos seus enganos” – nos dirá Beckett .

E isso tanto mais significativo, quanto, – a exemplo dos que se consideram amados, e mais ainda do que estes –, Albertine é uma embusteira nata, porém neutraliza e acalma os ciúmes e a sensação de impotência do narrador.

Ou seja, no perfil dessa nova criatura descoberta por ele “tranqüiliza-o a docilidade de uma Albertine sempre a sua disposição”.

Mas não é tudo. Neste ponto Beckett seleciona e nos comenta um trecho considerado de alta significação para a brusca mudança de sentimento do narrador em relação à indiferença que, em sua docilidade, Albertine já lhe chegava a suscitar.

De fato, o narrador estava decidido a romper sua relação sentimental. Havia até comunicado a sua mãe tal decisão quando, durante o trajeto em que regressavam de uma recepção em La Raspalière, uma fala de Albertine dizendo sua amizade com Mlle. Vinteuil e amiga, a atriz Léa, associadas pelo narrador como lesbianas a saborearem seu prazer em um ato de teatro sadista, lhe provoca uma impressão tão forte que os ciúmes elevados ao paroxismo juntam-se aos remorsos sofridos ante as lembranças das “maldades” cometidas a sua avó.

Remorsos provocados pelo fato de que, igual a sua avó, estar M. Vintueil falecido há um tempo, e assim também exposto aos maus pensamentos que então indiretamente lhe atingiam [1].

Marcel_Proust_ 1871-1922

Marcel_Proust_ 1871-1922

O Tormento Recíproco

Deste modo se esclarece para nós, leitores, o significado da expressão “tormento recíproco” qualificando como vimos os sentimentos na relação entre o narrador e Albertine, sobretudo aquela “proporção direta” entre o amor dele e o êxito dos seus enganos.

Trata-se de um paroxismo de ciúmes: a Albertine “tão alheada e desprendida do seu coração um momento antes”, a suscitar-lhe a indiferença, agora, um instante depois, não é somente uma obsessão, mas é parte dele mesmo, dentro dele.

Tal o episódio classificado por Beckett como “visão do Montjouvain”, a encerrar o verão, tornando inexistentes a praia e as ondas.

O véu do mar com seu simbolismo sublime já não lhe podem esconder “a visão intolerável da luxúria sádica” levando-o a ver em Albertine outra Rachel e outra Odette, a esterilidade e a burla de um carinho ditado pelo interesse.

Decide então conduzi-la a Paris e a guarda em sua casa. Será na referência da impressão causada por essa “visão do Montjouvain” – “a visão intolerável da luxúria sádica” – que o narrador passará a considerar sua vida como “sucessão de amanheceres tristes, envenenados pela tortura da recordação e o isolamento”.

Neste ponto da Tragédia de Albertine já podemos ver que a análise do problema da impossibilidade em tomar posse do outro se desenvolve na direção de uma filosofia estética do sentimento.

Para Proust “o homem não é um edifício cujas superfícies possam receber agregados, mas é uma árvore cujo tronco e folhagem são manifestações da seiva interior”.

O homem não pode sair de si, conhece os demais somente em si mesmo. Daí o sentimento como valor literário e artístico. Daí a visão da avó, a visão da própria Albertine, a visão do Montjouvain como expressões de ele mesmo, sua individualidade não-generalizável.

Quer dizer, se, como contração espiritual em busca imersiva, como escavação poética, o monólogo proustiano constitui um individualismo artístico composicional, enseja o mesmo através do pensamento da impossibilidade que se tira da tragédia de Albertine uma filosofia configurada na memória involuntária, como expressão de individuação.  

Neste sentido se compreende a seguinte reflexão do narrador:

 “Imaginamos que o objeto de nosso desejo é um ser encerrado em um corpo que pode se entregar a nós. Porém, ai!!! [tal objeto] é o prolongamento desse ser até todos os pontos do espaço e do tempo que ocupou e ocupará. Se não temos contato com tal lugar e com tal momento não possuímos a esse ser. Mas não podemos alcançar todos esses pontos”.

Ademais, prosseguirá o narrador: “um ser disperso no espaço e no tempo não é uma mulher, mas uma série de fatos que não podemos aclarar-los, uma série de problemas que não podem resolver-se”, um mar que açoitamos com varas como Xerxes vencido pelos gregos, em um desejo absurdo de castigá-lo por haver submergido nosso tesouro.

E o narrador define o amor como o tempo e o espaço perceptíveis pelo coração.

Daí que sua vida em comum com Albertine seja vulcânica: Fúria, Ciúmes, inveja, Curiosidade, Dor, Orgulho, Honra e Amor são termos intercambiáveis como um só sentimento e corroem seu coração. É o tema do sofrimento, já mencionado, o qual é em Proust a contrapartida mesma do desejo marcando a individualidade do narrador. A forma do amor para ele é preestabelecida pelas imagens arbitrárias da memória e da imaginação, a qual ele impõe à mulher, que deve conformar-se, e isto o faz sofrer.

A pessoa de Albertine não conta para nada: não é um motivo, mas uma idéia, tão alheada da realidade quanto alheado da verdadeira Odette é o retrato dela pintado por Elstir, e que não é o retrato da amada, mas do amor que houve por deformá-la.

Quer dizer, a angústia do narrador não provém de Albertine, mas de todo um processus de sofrimentos e emoções que o hábito associou à sua pessoa e vinculou com ela. Portanto, sua vida com Albertine, que não comporta vantagem real nenhuma, só não é sempre um apaziguamento porque o mistério de Albertine persiste.

Amor e Sofrimento

Desta forma viemos de alcançar a fase da relação do narrador com Albertine na qual é questão da interpretação que ele se dá.

Beckett põe em relevo o procedimento típico da elaboração proustiana dos personagens em que se exige a confirmação da perspectiva original.

Quer dizer, esta fase mostra os traços do começo da relação entre ele e Albertine, a qual começou nos ciúmes dele e na duplicidade dela, como vimos.

A expressão que melhor configuraria tal situação é dada na sentença em que o narrador se indaga: “como podemos ter a coragem de querer viver em um mundo onde o amor é provocado por uma mentira e consiste unicamente na necessidade de que apazigúe nossos sofrimentos quem quer que nos tenha feito sofrer?”.

Diante desse aguilhão Beckett não se contém e deixa escapar por sua vez a profunda impressão a ele causada por Proust.

Diz-nos que a tragédia de Albertine constitui um estudo sem paralelo em toda a literatura sobre tal “deserto de solidão e recriminação que os homens chamam amor”. Nessa “tragédia” o amor é-nos apresentado e desdobrado “com extrema malícia, em sua completa falta de reticência”. Daí falar-se de Tragédia de Albertine.

E Beckett prossegue tornando mais precisa essa imagem de tragédia: “todas as palavras e gestos de Albertine entram no torvelinho dos ciúmes e das suspeitas; são interpretados e mal-interpretados; permanecem gravados e também mal-gravados.” Cada incidente recordado se decompõe no ácido da desconfiança do narrador. Albertine é uma fugitiva e nenhuma expressão do seu valor pode ser completa, de tal sorte que “o infinito do que não é e pode ser, seria preferido à multidão do que é”.

Do alcance essencial dos ciúmes, que se impõe tomar como critério de objetividade literária decorre que os próprios ciúmes do narrador tornaram-se tão ferozmente hipertrofiados que compõem uma forma do seu complexo de domínio e do seu infantilismo, que Beckett nota constituírem estes duas tendências sumamente desenvolvidas em Proust.

O trecho da narrativa proustiana exemplificando essa compreensão diz respeito à fala com que Albertine comenta em aparência casualmente que talvez fosse visitar os Verdurin.

Acontece que essa fala é tomada pelo narrador como uma transposição das letras, como um anagrama a ser decifrado. Ela diz: “talvez vá amanhã ver os Verdurin. Não sei. Não tenho muita disposição”. Ele faz a versão e entende: “é absolutamente certo que amanhã irei ver os Verdurin. É sumamente importante”.

Tais os ciúmes em obra: ao lembrar que Morel prometeu reger o septeto de Vinteuil para Mme.Verdurin, o narrador não consegue evitar a inferência de que Melle. Vinteuil e amiga estarão presentes dentre os convidados e que, mediante um infernal golpe de astúcia, Albertine tivera marcado um encontro com elas para a noite seguinte.

Beckett observa que a capacidade dela em mentir não tem limite e tampouco é limitada a capacidade dele em sofrer. Entretanto, essa situação é especial exatamente porque ele sabe que essa mulher carece de realidade.

Tanto é assim que o narrador formula um juízo de valor sobre o objeto do desejo, afirmando que o apego mais exclusivo para com uma pessoa sempre é apego em relação a alguma outra coisa; que, em modo metafórico, na insignificância dela existe uma corrente misteriosa levando-o a adorar uma deusa implacável, cuja condição é a decomposição e cujo culto faz nascer à humanidade, a saber, a Deusa Tempo: “nenhum objeto estendido nessa dimensão temporal suporta a posse, lograda somente mediante a completa identificação de objeto e sujeito”.

É essa interpretação assim formulada por metáfora, procedimento típico da elaboração proustiana dos personagens, dispondo no caso ao narrador Albertine como uma mulher que carece de realidade e o levando conscientemente a adorar a Deusa Tempo, que permite a Beckett assinar aos ciúmes do narrador uma função essencial, meio para fazer ver a verdade da impenetrabilidade do ser humano mais comum.

Vale dizer, é inconfundivelmente repelida qualquer ilação sugerindo nessa impenetrabilidade do ser humano tratar-se de mera ilusão nos próprios ciúmes do sujeito.

Daí, desse alcance essencial dos ciúmes, que se impõe tomar como critério de objetividade literária proustiana – extensão da individuação na diferença intrínseca ao objeto do desejo [2] – decorre que os próprios ciúmes do narrador tornaram-se tão ferozmente hipertrofiados que compõem como disse uma forma do seu objetivo complexo de domínio e do seu infantilismo, que Beckett nota constituírem estes duas tendências sumamente desenvolvidas em Proust.

A continuação do trecho da narrativa proustiana selecionado como exemplo por Beckett nos deixa ver o trágico dessa definição do amor dada a si pelo narrador como “o Tempo e o Espaço perceptíveis pelo coração”.

Com efeito, tendo convencido Albertine para ir ao teatro no Trocadero em lugar de ir à recepção dos Verdurin e acreditando com essa sugestão havê-la afastado do perigo representado por Mlle. Vinteuil e amiga, o narrador é novamente levado a outra crise de ciúmes ao ler no Figaro que a amiga, a atriz Léa das suas suspeitas, atua precisamente na representação de gala à qual enviou Albertine.

Torna-se frenético. Logo envia Françoise a buscá-la, conseguindo que Albertine regressasse sem ter falado com Léa.

E assim o tormento dele se sucede, alternando momentos de apaziguamento. Quando não são essas amigas que o fazem perder a calma, será a alusão de Albertine a Andrée que inflama a sua suspeita.

Agasalha então a idéia de que conseguirá esquecê-la quando Albertine tenha ido, assim como esqueceu Gilberte Swann e a Duquesa de Guermantes – possibilidade esta inverossímil para Beckett, pois em face de Albertine a relação entre o narrador e Gilberte significa tão somente um experimento.

Personagem neurótico, seu tormento agrava-se com a idéia de que cessará o seu sofrimento, sendo-lhe essa idéia mais insuportável que o sofrimento mesmo.

Neste ponto, finalmente, Beckett deixa claro para nós a aproximação entre a tragédia de Albertine e a “Phedra”, de Racine – peça esta mencionada várias vezes em “Le Temps Retrouvé” – ao nos recontar o episódio da decisão do narrador em se afastar dela, mas que fracassa. E fracassa exatamente porque na mesma manhã de sua decisão ela sai, deixando-lhe uma carta cuja mensagem tem o estilo de Phedra reconhecendo os deuses sempre vigilantes [3].

leituraO Calvário Invertido

Mas não é tudo. Antes de prosseguir devemos lembrar que o simbolismo de Proust compreendido na definição do amor como “o Tempo e o Espaço perceptíveis pelo coração” é um simbolismo não-abstrato e não-discursivo, distinto, pois, de Baudelaire, e que ademais apela ao efeito, ao conseqüente: substitui a inteligência pela efetividade.

Proust se descobre a si mesmo como artista no Tempo, criador e destrutivo, e se o objeto do desejo pode ser um símbolo vivo o será como símbolo de si mesmo, sendo tratado como realidade. Beckett assinala a frase “descobrir-se a si mesmo como artista nesse Tempo metafórico de efetividade”, tal como enunciada pelo narrador: “compreendi o sentido da morte, do amor e a vocação dos deleites do espírito e a utilidade da dor”.

Desta forma podemos apreciar melhor a interpretação por Beckett dos sentimentos do narrador quando, pouco depois da aludida carta raciniana, Albertine morre, e a liberação dela ante o domínio do Tempo não apazigua os ciúmes do narrador ou, no dizer de Beckett, “nem acelera o desaparecimento de uma obsessão cujo tormento eram os dias e as horas”.

De fato, a análise em sua approche singular é orientada pela percepção de que o narrador e Albertine e o amor deles eram submergidos no passado e no presente, de sorte que o clima espiritual liga-se a um calendário sentimental cujo instrumento de medida não é solar, mas sim o coração.

Quer dizer, para chegar a esquecer Albertine precisa o narrador esquecer “as estações” percorridas que não são apenas as do calendário, mas são as suas estações; precisa não só esquecê-las, mas, como uma criança, precisa aprendê-las de novo. Terá ele que esquecer não uma, mas inumeráveis Albertines e, correlativamente, não somente um Eu, mas muitos Eu.

E Beckett nos reintroduz de novo no tema do sofrimento, ou melhor, nessa forma de sofrimento que ele já caracterizou como “Calvário”, mas agora se nos apresenta sob um novo aspecto.

De fato, para esquecer, o narrador terá que percorrer as estações no sentido inverso, no sentido de um sofrimento decrescente.

O assombro da realidade de Albertine tão viva dentro dele, sendo confrontada pela idéia de sua morte cede ante o assombro menos doloroso de que a realidade da morte dela seja contrastada pela idéia da vida, a de que alguém morto possa importar-lhe.

Tal o “calvário invertido” de que nos fala Beckett, o que não significa a supressão do dinamismo original do Calvário, do seu crescendo, pois o percorrido das estações permanece tendendo para uma Cruz.

Em cada alto (do Calvário) o narrador sofre a alucinação de que, todavia, tem por diante o que já deixou para trás: tanta é a maldade da memória.

***

Assim como tudo o que não é  coisa mentada é impenetrável, a tendência artística é incomunicável, isto porque não é expansiva, mas sim contração espiritual em busca imersiva e, em conseqüência, a arte é a apoteose da solidão.

***

 

Três das etapas de seu Calvário são descritas pelo narrador em ordem decrescente de crueldade da memória, reproduzidas por Beckett no seguinte:

A primeira, uma caminhada através do parque “Bois de Boulogne“, onde toda a figura feminina é uma Albertine, aparece como uma síntese astral da alegre e buliçosa turma das moças de Balbec, já não mais como antes, porém numa simetria inversa: um bando que se fragmenta e empalidece convertendo-se em sua nebulosa;

A segunda etapa desse calvário invertido surge em uma conversação do narrador com Andrée, quem lhe revela toda a falsidade e desgraça da vida de sua amiga;

Por último, percorre a etapa cumprida em Veneza, quando o telegrama de Gilberte anunciando-lhe seu compromisso de matrimônio com Robert de Saint-Loup lhe aparece como se fosse firmado por Albertine – devido à ortografia vulgar e presunçosa de Gilberte.

 

Nada obstante, essas imagens de uma Albertine que se ergue do meio dos mortos não turvam a única imagem guardada no coração do narrador, naquele “ato puro de inteligência-intuição”: a Bacante da praia. Tal a confirmação final da perspectiva original do personagem de Albertine, configurando o procedimento típico da elaboração dos personagens em Proust.

Apesar das negações de sua razão, o narrador vê seu amor por Albertine como um testemunho de sua clarividência original e como uma afirmação da original “visão dela como uma gaivota rapace, esquiva, hostil e remota contra o mar”.

Neste ponto Beckett nos esclarece a derivação direta do tema do sofrimento como proveniente do próprio modo de ser do artista, personificado no narrador como elemento da figura trágica.

O artista não pode praticar a amizade que é uma força de autonegação.

Assim como tudo o que não é coisa mentada é impenetrável, a tendência artística é incomunicável, isto porque não é expansiva, mas sim contração espiritual em busca imersiva e, em conseqüência, a arte é a apoteose da solidão.

Já notamos que, quando o narrador vai a Balbec e a Veneza conhece Gilberte e a Duquesa de Guermantes e Albertine “é empurrado por seus equivalentes arbitrários e ideais e não atraído pelo que são”.

A tendência artística não pode se valer dos meios de comunicação, porque a palavra e o gesto deixam de ter o seu significado quando passam da personalidade para a qual são expressões válidas, para a personalidade que lhe é contraposta.

Portanto, Proust nega valor à idéia nietzschiana de “afinidade intelectual”, pois só há acordo com aqueles cujas idéias (não-platônicas) padecem o mesmo grau de confusão.

Quer dizer, a única essência real e incomunicável de ele mesmo seria assim sacrificada a um hábito espantado.

Daí a figura trágica: o homem como criatura que conhece os demais só em si mesmo e mente se afirma o contrário.

A Tragédia é então exposição de uma expiação no sentido do pecado original, pois no dizer do próprio narrador proustiano: “o delito maior do homem é ter nascido”.

 

***

 

Autor JLumier2012A

O autor Jacob (J.) Lumier em 2012

© 2007-2010 Jacob (J.) Lumier

 

 


[1] Ver o relato sobre o falecimento do Monsieur Vinteuil em “Du Côté de chez Swann – vol.1”.

[2] A objetividade literária implica narrar uma experiência cuja realidade (objetiva) pode ser reconhecida pelo leitor (através dos ciúmes), no caso a realidade da experiência de um indivíduo que se descobre na impossibilidade da posse de outro, verdade da impenetrabilidade do ser humano mais comum.

[3] A centralidade da Tragédia de Albertine na abordagem beckettiana tem referência no relevo atribuído ao estilo de Phedra, de Racine, haja vista a recorrência da metáfora de Deuses sempre vigilantes para assinalar os obstáculos à transição da experiência artística [Tempo, Hábito, Memória, com maiúsculas, metáforas de Janus, obrigando o artista a evadir-se da própria coisa mentada como da Sua Tirania e Vigilância] e agora, nessa interpretação do personagem Albertine como uma mulher que carece de realidade e o leva conscientemente a adorar a Deusa Tempo [“o Tempo e o Espaço perceptíveis pelo coração”].

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